Primeira Parte
No início de agosto de 1979, eu morava no Rio de Janeiro. Decidi parar com o ensino tradicional por dois motivos: já tinha tomado duas bombas em Matemática e tinha medo de enfrentar essa “terrível” matéria novamente. Consegui, a duras penas, colando descaradamente, passar na prova de segunda época, terminando o antigo ginásio, que não sei como se chama hoje. O segundo motivo foi que eu queria comprar discos importados e, pra isso, precisava trabalhar.
Fiz, então, um pacto com meus pais: eu apenas “daria um tempo” nos estudos tradicionais, fazendo depois um curso intensivo para chegar à faculdade e recuperar o tempo perdido. Enquanto isso, poderia fazer um curso de cinema e continuar tocando com minha banda nos finais de semana, nos clubes Tijuca, Caiçaras e Botafogo. Sem a pressão do estudo convencional, seria possível trabalhar de segunda a sexta e ainda fazer o curso de cinema, que não era diário, e ensaiar e tocar nos bailes de fim de semana.
Eu já levava essa vida, começava a colecionar discos incríveis, que não saíam no Brasil, quando meu primo, que morava em Nova York, chegou ao Rio pra passar uns dias de férias e rever a família.
Não nos víamos há uns dois anos e contei as novidades. “Não sabia que você era assim tão fanático por rock e cinema”, ele disse. “Olha, tenho uma idéia: quer passar uma semana em Nova York? Vou pra Londres depois de amanhã, você vai comigo e, de lá, vamos pra Nova York. Dá pra você pedir dispensa do trabalho por uma semana?”
Fiquei empolgado, claro. Meu chefe gostava de mim, era muito amigo de meu irmão mais velho, e certamente não impediria que eu fizesse aquela viagem. O curso de cinema era às segundas, quartas e sextas. Portanto, eu perderia apenas três aulas, que poderia recuperar na volta. E, no próximo fim de semana, meu grupo musical não estava escalado para nenhum baile nos clubes. Havia uma tabela de revezamento com outros grupos e, naquele fim de semana, nós íamos apenas ensaiar. Tudo parecia bem.
Mas, e minha mãe??? “Deixa comigo”, disse meu primo. “Vou falar com ela.” Ainda bem que ele foi falar, pois ela já andava furiosa comigo, por ter parado de estudar, e não admitiria nem que eu fosse passar um fim de semana em Petrópolis! Londres, Nova York?? Nem pensar!
A sorte é que ela gostava de meu primo, um cara legal, de 35 anos, que tinha ido para Nova York há cinco anos e se tornou um gerente comercial de uma importante empresa multinacional, conhecia meio mundo e falava quatro idiomas fluentemente.
Eu nem fiquei em casa naquela noite, quando ele foi lá conversar com meus pais. Fui pra casa da mãe dele, minha tia, e fiquei torcendo pra tudo dar certo. Horas depois, ele apareceu, sorrindo, e disse: “Vai pra casa fazer a mala!”
UAU!! Nem dormi naquela noite, de tanta adrenalina. No dia seguinte, pegamos o avião para Londres. Como beatlemaníaco, meu sonho era visitar Abbey Road, conhecer o famoso estúdio, tirar fotos atravessando a rua, como na capa do disco, tinha até arrumado uma roupa toda branca, como John Lennon aparecia ali, quando, já no avião, meu primo me despertou de meus sonhos: “Só vou poder ficar um dia em Londres, pra resolver um assunto da firma. Mas, no fim do dia, podemos ir a um local ali perto, chamado Knebworth, onde vai ter um concerto do Led Zeppelin.”
Na hora, fiquei desapontado. “Se pelo menos fosse o The Who”, pensei. “Mas, sem Keith Moon, também não faço muita questão!” Moon tinha morrido no ano anterior, infelizmente. Mesmo beatlemaníaco, eu adorava o estilo malucão do Keith Moon, adoraria ter visto o The Who com ele.
Mal sabia eu que iria ver de perto outro incrível baterista, John Bonham, que também iria morrer no ano seguinte, decretando o fim do Led Zeppelin. Eu tinha dois discos do Led, o segundo e o quarto, mas não era o grupo que eu gostaria de ver, na minha lista de prioridades. Os Beatles, infelizmente, eu sabia que não voltariam mais, desde que vi “Let it Be”. Estava claro que eles não se suportavam mais. Até o sempre bem-humorado Ringo teve atritos com Paul McCartney durante as filmagens. George não queria filmar nada e, Lennon, muito menos. Levou Yoko pro estúdio e ficou alheio a tudo, “Paul que fizesse o filme dele”.
Em Londres, fiquei chateado também porque nos hospedamos bem distante de Abbey Road. Como não conhecia a cidade, tive que acompanhar o primo na reunião com os empresários, almoçamos por ali mesmo e fomos para Knebworth. Meu primo gostava de um som pesado. Eu, nem tanto. Saindo de Londres, eu ainda pedi: “Não dá pra gente passar por Abbey Road? Nem um pouquinho?” Não dava! Eu comecei a chorar, sem que ele percebesse. Afinal, ele me levou pra Londres, eu ia ver o Led Zeppelin, e depois íamos pra Nova York! Que presentão pra um garoto de 15 anos!
Em Knebworth, vi a maior multidão de minha vida! Tinha muito mais gente do que um Maracanã lotado! Foi um sufoco pra chegar mais ou menos perto do palco. O som da guitarra de Jimmy Page era uma coisa notável, só ouvi algo parecido muitos anos depois, no show do Ten Years After aqui em Belo Horizonte, com outro guitarrista fenomenal, Alvin Lee!
Levei pontapés, empurrões, quase quebraram meus óculos, mas valeu a pena! Não pudemos chegar perto do palco, era impossível, porém o som estava ótimo, dava pra ouvir de longe. Enfim, valeu! Dia 11 de agosto de 1979. Cerca de um ano depois, o ótimo baterista John Bonham morreu, de tanto beber, como tinha acontecido com Keith Moon em 1978.
No dia seguinte, voamos pra Nova York. “Tenho que resolver umas coisas lá”, disse meu primo, “mas podemos ficar uns três ou quatro dias de bobeira, vou te mostrar a cidade, é uma beleza. Depois, voltamos pro Rio, quero curtir pelo menos mais uma semana de férias, pegar uma praia, rever os amigos que não pude encontrar semana passada.”
Nova York me deixou perplexo, com aqueles prédios gigantescos, uma vida noturna recheada de atrativos. Da janela do apartamento de meu primo, era possível ver, ao longe, o Central Park. Na tarde seguinte, enquanto ele saiu pra cuidar de seus negócios, resolvi conhecer sozinho o Central Park, que já tinha visto tantas vezes no cinema. E eu jamais imaginava que, minutos depois, teria a mais impressionante surpresa de minha vida!
Segunda Parte
Atravessei a rua e logo cheguei ao Central Park. Lindo, imenso, muito verde, com pistas para corridas e bicicletas. Tinha sol entre nuvens e a temperatura estava ótima naquela época do ano, nem muito frio, nem muito quente. Andei durante quase uma hora, observando tudo, achando engraçado aquelas pessoas bem vestidas deitadas na grama, como se estivessem num piquenique, alguns lendo, outros pareciam dormir mesmo, enquanto a turma do Cooper passava voando! Procurei um banco pra descansar um pouco, e fiquei vendo o movimento das pessoas.
Foi quando vi um cara alto, de óculos, usando uma camisa verde comprida, aberta, por cima de uma camiseta branca. Ao seu lado, uma criança de cerca de cinco anos, imaginei. O menino segurava a mão dele, mas, às vezes, corria pra ver outras crianças brincando e depois voltava. Eu olhava ao redor e me distraia com tanta coisa que, por um tempo, não os vi mais.
Quando voltei a olhar à minha direita, o cara alto e a criança já estavam bem perto de mim, iam passar na minha frente. Notei uma semelhança com alguém que eu já tinha visto, mas não lembrava onde. “Esse cara parece bastante com… John Lennon, puxa! Mas, não pode ser. Ele não andaria sem seguranças pelo Central Park, é um ídolo mundial!”
Um grupo vinha na direção contrária e acenaram pra ele: “Hey, John!” Eu comecei a ficar inquieto: “O nome dele também é John!” O menino se soltou novamente e correu em direção a uma árvore. O cara alto gritou: “Sean, come here!” Eu fiquei gelado! “Ele parece Lennon, o menino tem o nome de Sean… Será possível?”
Dois outros garotos passaram por eles. “Hello, John!” Eles se aproximavam cada vez mais de onde eu estava. Agora, eu não tinha mais dúvidas! O criador dos Beatles estava realmente ali, na minha frente, passeando com o filho Sean!
Sim, o que parecia impossível tinha uma lógica! John tinha se afastado de tudo desde 1975, com a intenção de apenas cuidar do filho Sean. Nada de shows, nada de gravações. Yoko cuidava dos negócios da família, investia em imóveis, já tinha comprado quatro ou cinco apartamentos no cobiçado Edifício Dakota, onde Roman Polanski fiimou “O Bebê de Rosemary” em 1968. E John decidiu acompanhar de perto o crescimento de Sean, o que não conseguiu fazer com seu primeiro filho, Julian, no auge da Beatlemania.
Em 1979, os Beatles existiam apenas nas lembranças, nos discos. Raramente eram notícia de jornais e revistas. Só quando um deles lançava disco. A internet não existia em 1979, nem celulares. Então, naquele cenário, era possível, sim, que um mito como John Lennon, distante dos holofotes da mídia há quatro anos, pudesse passear tranquilamente com seu filho no Central Park, como faziam, naquele exato momento, vários outros pais com seus filhos.
E o que eu faria ali? Deixaria meu ídolo passar por mim como se fosse uma pessoa comum? Não faria nada? Ia ficar sentado ali, vendo John Lennon passar sozinho na minha frente?
Minhas emoções falaram por mim. Dei um pulo do banco e me aproximei com cautela. Ele continuava olhando a correria de Sean, quando eu cheguei perto e, tremendo, consegui falar:
- John?
Ele estava rindo da agitação de Sean e continuou rindo quando se virou pra me olhar.
- Yes!
Eu tremia e parecia que a voz não ia sair.
- I’m your fan…from Brazil!
- Brazil? I would like to go there one day. Who knows?
Eu fiquei parado ali, sem saber o que fazer. A tremedeira aumentou, comecei a gaguejar palavras sem sentido, olhei pra ele e depois desviei o olhar pro chão.
- Sorry…I lost my voice!
Ele entendeu meu nervosismo e me deu um abraço com força. Depois, me segurou pelos ombros e olhou pra mim.
- Thank you, boy!
Naquele instante, eu olhei em seus olhos e percebi o John tão fotografado anos atrás. Tudo que eu sabia sobre ele, até aquele instante, passou em meus pensamentos como um raio. Sim, era ele, mas, o mais importante, era a calma que ele procurava me transmitir. Estava tudo bem, não havia motivos para nervosismo.
Ele sorriu com sinceridade, ainda olhando em meus olhos. Parecia querer ter a certeza que eu ficaria bem ali. Aos poucos, eu consegui sorrir também, enquanto ele ainda me segurava pelos ombros. John fez um sinal de positivo com a cabeça, deu dois tapinhas em meu ombro esquerdo, como se perguntasse se tudo estava bem, e eu sorri pra ele.
John, então, chamou Sean, segurou a mão do filho e continuou seu passeio. Eu fiquei parado no mesmo lugar, sorrindo, quando vi Sean se virar e dar um “até logo” com a mão. Acenei de volta. Voltei para o banco e fiquei vendo os dois se distanciando. Logo após, passou por mim um cara tipo halterofilista, de terno e gravata. “Deve ser o segurança”, pensei. Tudo bem que Nova York é uma cidade onde a população está acostumada a encontrar artistas famosos o tempo todo, nos restaurantes, teatros, cinemas, ruas, parques, mas, no caso do criador dos Beatles, talvez fosse melhor ter um segurança mesmo.
Nada mais me interessava naquele momento. Quando os perdi de vista, levantei e voltei pro apartamento do primo. Procurei um plástico, pra guardar aquela camisa pelo resto da vida. Ainda a tenho aqui, exatamente do mesmo jeito que a trouxe de Nova York. Quando ia colocar no plástico, notei um fio de cabelo na altura do meu peito. Examinei atentamente. Não era meu. Seria do John? Tentei lembrar o tamanho do cabelo que ele usava quando me abraçou. Sim, talvez fosse. Também podia ser do Sean, ou da Yoko, ou de outra pessoa que ele tivesse abraçado no Central Park.
Por via das dúvidas, deixei ali aquele fio de cabelo e guardei a camisa cuidadosamente em minha mala. Ao longo dos anos, só faço trocar o plástico, a camisa continua do mesmo jeito.
Meu primo chegou no início da noite e me viu parado na janela, olhando pro Central Park. Felizmente, ele era um cara paciente e me ouviu falar de John durante toda a noite, no jantar, nos dias seguintes, me mostrando boa parte da cidade, e no avião, voltando pro Rio.
Quando cheguei, meu assunto era só esse, entre os vizinhos, amigos, parentes do Rio, quem eu encontrasse pela frente. Também telefonei e escrevi cartas pra amigos de outras cidades, fui diversas vezes aos Correios. Eu estava feliz, e tive a sorte de encontrar John num momento também muito feliz de sua vida.
Na primeira semana em que meu grupo musical voltou a tocar nos clubes, escolhi apenas músicas de John e consegui convencer meus colegas de que aquele repertório era o ideal. Tocamos todas as dez faixas compostas por Lennon para “A Hard Day’s Night”, juntando com outras como “Help”, “Day Tripper”, “I Call Your Name”, “Ticket to Ride”, “I Feel Fine”, “It’s Only Love”, “Come Together”, “I Want You”, “Love”, “Look at Me”, “Mind Games” etc. Durante muito tempo, as músicas de John dominaram quase completamente nosso repertório.
Tudo era alegria pra mim. Uma alegria que durou pouco mais de um ano, quando um desgraçado maluco o matou pelas costas. A partir dali, a dor da perda do ídolo jogou minhas recordações para um local desconhecido de meu subconsciente. Nunca mais falei nisso. Foi um período de grande tristeza, de depressão mesmo, me fazendo perder o entusiasmo de tocar, o que acarretou no fim da banda. Nunca mais toquei. Minha velha guitarra hoje apenas serve de decoração aqui em casa. Num lugar bem alto, fora do alcance de minhas mãos. Fica ao lado de uma imensa foto de John, em 1968, ele todo de jeans, no palco, com sua guitarra e olhando para a câmera.
Essas lembranças só voltaram com alegria quando percebi, no ano passado, pelo Twitter, a existência de muitas fãs dos Beatles, hoje com 14, 15, 20 anos. Foi uma agradável surpresa. Fiquei amigo de várias beatlemaníacas que nem haviam nascido quando encontrei John no Central Park. E é a elas que dedico este meu relato. Um momento feliz de minha vida.
Fim.
Por Bill Falcão (Jornal da Lua)
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